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O Botão de Pérola

  • Michel Schettert
  • 20 de nov. de 2023
  • 7 min de leitura

Atualizado: 24 de abr. de 2024

A voz de Patricio Guzmán fala do cosmos como se sua casa fosse.

Há um certo didatismo no que diz o diretor sobre a água e a matéria, tanto dentro quanto fora da terra, se é que essas determinações existem. O universo micro e macro a que somos apresentados pelo filme, se enxergam pelos olhos de uma lente curiosa, tipo lupa ou telescópio, que se preenche com os detalhes das coisas ou das estrelas. Ou seja, aquilo que nos atinge fenomenologicamente tanto por baixo quanto por cima. A água assume sua importância ontológica. O diretor focaliza esse fluxo na Cordilheira dos Andes, para fins de uma localização geográfica que irá dar chão ao filme. As imagens, igualmente à trilha sonora, são da ordem do sublime. A mescla de efeitos líquidos e vaporosos dão instrumento ao sopro de vida que narra Botão de Pérola. É de arrebatar.


Assim começa a narração do cineasta. Ele fala de seu ponto de vista - o único ao qual podemos nos atracar para falar de alguma coisa neste mundo. Mas Guzmán vai além. Ele cria uma imagem da imagem que nos cativa. Elas parecem ter vida própria. Tem empatia. Suas lentes são postas nos lugares perfeitos, para não dizer paradisíacos, mesmo que lúgubres, às vezes, devido ao frio. Vemos que a natureza pulsa ainda mesmo sob o gélido clima do pólo sul. O Chile é sempre o tema principal dos filmes de Guzmán. Neste Botão de Pérola, seu país nos é apresentado sob a perspectiva das águas que preenchem as formações geológicas locais. A paisagem, ao sul, apesar de congelante, tem muita vida e uma vegetação corrente. A Patagonia é um mistério até hoje, por onde andavam os ancestrais latino-americanos mais ligados com a sobrevivência no frio.


Em imagens de arquivo, vemos como os povos indígenas utilizavam peles de animais para se proteger. Nômades da Água, sintetiza o autor. Viviam em clãs que viajavam pelos lagos. Guzmán faz questão de citar seus nomes e apresentar seus modos de transitar em canoas. Dando a voz aos descendentes dos nativos, o diretor faz uma operação de generosidade em sua narrativa. Ouvimos dos próprios indígenas como era a relação deles com a água, este elemento tão fundamental para o ser humano. Sua curiosidade vai criando perguntas e interrogações aos nativos, buscando mais informações sobre aquele modo de viver. O imenso arquipélago, para ele, é um lugar de fabulações, de dúvidas sobre a natureza do homem. Ele vai conversando e pedindo que lhe contem sobre como comiam, bebiam e se movimentavam. A dependência do vento aparece então, pois as embarcações não possuíam motores. A vela e o remo eram os instrumentos de navegação. A facilidade que os motores trouxeram a civilização, aliás, é algo bem recente perto do período nômade, damo-nos conta. A água e o vento fazem parte das famílias, mais que qualquer veículo. Essa dependência tinha uma relação natural, sem queima de hidrocarboneto petrolífero megapoluidor.


A infância de Guzmán expõe um trauma: a primeira vez que viu um corpo desaperecer no mar. Era o seu amiguinho. Ficou intrigado como a água passou a lhe causar ânimo e medo ao mesmo tempo. Sua crítica vai então escolher uma via: a do medo. Ele diz que o povo chileno perdeu a intimidade com o mar. Por quê? - Pergunta Guzmán. Sua busca, que havia então começado com os arquivos e fotografias históricas, vai agora tentar olhar para interpretações artísticas deste problema. É quando o mapa de sua amiga pintora, Emma Malig, lhe mostra a imponência geológica do que está sendo abordado. Ela desenrola um gigantesco mapa em relevo da Patagônia e do Chile. A imensidão da cordilheira evidentemente aparece logo de cara, pois o país é situado entre o mar e a imensa serra. Mas o que chama a atenção são os lagos que estão entre os dois, essa porção de água por onde se desenvolveram ao menos 4 povos indígenas. O que era um país dividido em 3 partes agora se reúne em uma só imagem: o norte, o centro e o sul ganham unidade. Louváveis os poetas que vão interpretar essa relação com a escala, visualizando as contradições que o medo impôs ao povo frente às possibilidades do oceano pacífico. O que houve? - Pergunta Guzmán. As pessoas não conversam com o mar. Mais um problema que o documentário busca responder. O cineasta mostra como a civilização se voltou para o céu. Vemos então as poderosas antenas dos satélites, observatórios cósmicos que tentam observar o que há fora daqui, fora da Terra. Ou seja, fica clara a crítica de como nós não sabemos enxergar o que está na frente do nosso próprio nariz. Preferimos negar o medo e assumir um voyerismo do que enfrentar os também incontáveis litros de água que fazem parte de nós mesmos - afinal, somos compostos de mais de 70% de água. A nossa memória está contida nos elementos da natureza, mas insistimos em negá-la. Em troca de quê?


A atividade de pensar se parece com o oceano. É o que aprende o cineasta com o seu amigo oceanógrafo. Ele vai notar a correlação dos povos indígenas com seu modo de vida cerca aos mares. Ao mesmo tempo, eles também pensavam nas constelações. Acreditavam que poderiam virar estrelas. As pinturas corporais que vemos no filme são indicativos desse pensamento, que além de líquido, também era cósmico. Eis o princípio da eternidade e da incerteza - embora não se saiba os significados dos desenhos corporais. A complexidade dos humanos suspende qualquer leitura do que estão buscando. O poeta diz:


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Somos buscadores da ancestralidade. Olhamos para o céu tentando saber quem éramos nós no passado e quem seremos nós no futuro.

Impossível não lembrar também da Arqueologia. Mas a crítica do cineasta investe contra o comportamento branco diante da cosmogonia indígena. O colono chegou impondo violentamente sua cosmovisão, chamando os indígenas de corruptos e ladrões. Impuseram sua ordem moral e destituíram-lhes a alegria de viver. Os povos da água foram exterminados pelos colonos europeus, extirpados de sua cultura ancestral, forçados a viver de uma forma que julgavam eles, os brancos, correta. Um delírio que as mentes do passado não podem apagar nem repetir. A resistência se deu com muito sangue e tristeza. Os descendentes destes povos contam no filme com abatimento o que foi ser indígena naquele país, crescendo em meio ao preconceito e a anulação da sua identidade. Ora, no Brasil foi a mesmíssima coisa, resultado de uma invasão espacial, moral, intelectual. A língua sobreviveu com muito esforço. A narrativa mostra as discrepâncias entre diversas palavras e o quanto seus significados divergem das cosmovisões sobre realidade e comportamento. Esse Deus que pune sequer existia aqui. Patagones, por exemplo, era como os espanhóis chamavam os indígenas devido aos seus membros grandes. Será que ocorreu o mesmo em todos os planetas? A atitude dos mais fortes teria sido igual em todos os mundos? - Pergunta o cineasta.


Gabriela, quando inicia a contar toda sua jornada de mil quilômetros remando sobre o lago (na sua língua Kawesqar), tem sua expressão modificada. Sua gestualidade inaugura um novo movimento linguístico. O idioma resistiu por centenas de anos e vemos nesta mulher o que sobrou. É um relato vivo. Enquanto isso, em suas pesquisas, o diretor encontra o personagem de Jimmy Button, um caso verdadeiro de colonização. Trata-se de um indígena da Patagonia que entrou numa embarcação britânica para estudar na Europa, sob ideia do comandante. Ele subiu em troca de um botão de pérola. Por isso Jimmy Button, seu nome. Fez uma viagem de 1000 anos até a Revolução Industrial e viveu em um “planeta desconhecido”, em direção ao futuro. Depois voltou ao passado, convertido em naif gentleman. Quando voltou, tirou as roupas e continuou falando metade inglês metade sua língua. Nunca voltou ao que era antes.


Os colonos impuseram sua opressão no Chile durante 150 anos, até que Salvador Allende quebrasse o silêncio dos colonizados. Os nativos puderam expressar sua importância, mesmo que logo em seguida, no golpe de 1973, tenham sido novamente calados. A ditadura durou 16 anos. 800 cárceres secretas. 350 funcionários, muitos deles torturadores. Houve casos de presos esquartejados vivos e mulheres estupradas diante de suas famílias. Enforcamentos, queimaduras com ácido, cigarro e choques elétricos foram aplicados. Foram drogados e degolados. Chegavam a ficar presos em celas de 1 metro cúbico. Veja bem, eles não queriam informações. Torturavam para exterminar. Sequer diziam onde estavam presos. Os ministros de Allende foram deportados de Santiago e presos na Ilha Dawson. Lá ficaram isoladas compulsivamente mais de 700 pessoas. #memoriavivalatinoamericana


E aí o filme expõe a confissão de alguns militares que admitem que algumas pessoas foram lançadas ao mar por helicópteros da ditadura. Vemos na televisão alguém falando sobre olhos de vidro e, mesmo sem entender nada, percebe-se o grau de vigilância que um sistema de crimes contra a privacidade exerce em nossas vidas. Através de ideias subjetivas, quase camufladas, os veículos reproduzem uma fórmula de manipulação que continua a dar certo. Então, logo em seguida à cena repugnante da Senhora Militante lançada ao mar, o que vemos? Vemos a cruz/âncora do barco amarrada a uma corda. Ora Pro Nobis.


A viagem forçada e a viagem voluntária pode ser pensada aqui, se fizermos um exercício de pontos positivos/negativos. Viajar com disposição é conhecer o diferente, abrir-se para um mundo desconhecido e aprender que a configuração global não é parada no tempo. Tudo é dinâmico. Apesar de todos sabermos que a História não é estática e às vezes acharmos que ela está se repetindo, ela não está. Ela está sofisticada, tanto para o bem quanto para o mal. Pensando então em um deslocamento forçado - viagens sob escravidão ou migração compulsória - as consequências são eternamente devastadoras. A miséria, a fome, a pobreza, a violência são motivos ainda muito presentes no mundo, devidos à falta de amor, compaixão, empatia, seja lá a palavrinha que inventem na Academia ou na Mesa de Bar; é o cabresto que só permite ver no espelho a sua própria imagem, que só enxerga no ecrã o próprio nariz. O "próximo" virou algo muito distante, mesmo passando na sua timeline.


A grande mensagem de Botão de Pérola então é: viaje o quanto puder. Faça como Jimmy Button. Tenha coragem. Misture-se, misture sua língua, sua cor, sua palavra, seu fogo e seus líquidos. Seja o trapo de um tecido que se agarra a outro através de um disco duro, por onde giram os fluxos de conexão entre as inteligências, por onde se misturam os genomas adaptáveis ao imprevisível visgo emoliente que é o mundo. E não esqueça das merdas do passado.

 
 
 

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