Dias Perfeitos
- Michel Schettert
- 5 de mar. de 2024
- 4 min de leitura
Fui ao Cine Líbero Luxardo, agora reformado, com cadeiras novas. Dizem que o sistema operacional também foi atualizado. Apesar disso, uma enorme linha vertical marca o terço direito da tela de projeção, de cima à baixo. Parece que um encosto tentou manchar a honra da sala de cinema mais charmosa de Belém. Uma pena, espero que reparem logo isso. No saguão, lotação máxima para ver o novo filme de Wim Wenders. Distribuíram 93 senhas antes de iniciarem a venda dos ingressos. Esgotado. Eu, mesmo cansado, vim diretamente do aniversário da Silvia no Benguí, onde encontrei com meus manos Alex, Frank e Casé. Depois das lágrimas com a velha Meire e das gargalhadas com os bons rapazes, cheguei no Centur 1h antes do filme começar. A fila estava dando caracol. Tinha gente demais, inclusive do Teatro Margarida Schivasappa. Eu comia pipoca e observava aquela turma na moda. Reparava nas meias de cano alto de uma garota bem na hora em que o pessoal da sessão anterior começou a sair do cinema. “Vai começar a confusão”, pensei. Seria engraçado de qualquer jeito aquela situação. Na minha frente havia um rapaz com uma camisa xadrez vermelha e preta e, logo à frente dele, um senhor de camisa azul listrada de branco. Este se parecia com o reitor da UFPA, Emmanuel Tourinho. Talvez fosse ele mesmo, com sua companheira. De fato, era uma turma bem diversa, de várias idades e estilos. Acabou dando certo a entrada em espiral. Literalmente bailamos no salão para poder organizar a entrada no cinema.

Depois dessa gira, a primeira surpresa do filme foi a janela 4:3 – coerente com a estreiteza dos espaços de Tóquio. O filme se passa na capital japonesa e, às vezes, lembra aquelas “sinfonias metropolitanas” dos filmes de Vertov, Epstein, Richter e outros vanguardistas. Mas o protagonista não é o ritmo puro das cidades. O espectador vai para dentro do experiente Hirayama, interpretado pelo respeitadíssimo Koji Yakusho. O filme é todo falado em japonês e fica a dúvida se Wenders fala o idioma nipônico ou não. Pelo menos sabemos que ele tem estreita relação com aquela cultura, desde Tokyo-ga (1985). De fato, Wenders foi atrás desse filme não para mostrar a beleza da rotina, como muitos podem achar, mas para enaltecer a força do foco. No mundo de dispersão em que vivemos hoje, o filme é um spot de luz sobre alguém que foca em alguma coisa com verdadeiro empenho. Hirayama tem sua rotina sim, mas é o foco, estampado nas suas expressões, que nos leva a simpatizar com ele. Como alguém pode focar tanto em limpar banheiros públicos? Uma tarefa difícil e suja que nem de perto aparece nas cenas de Dias Perfeitos. Nesse sentido, é bem romântica a rotina do nosso protagonista. Os banheiros são lindos, inclusive. Construções desenhadas por arquitetos renomados (um par deles são criados por amigos do diretor). As porcelanas perfeitas, a vidraçaria no brinco, que até mudam de transparência, numa demonstração de beleza em algo que normalmente é desprezado. Pois o filme não é sobre isso? Muito das coisas que são desprezadas pelo nosso governo, como o esgoto, por exemplo, são substanciais para uma sociedade. É um tratamento que o diretor passa a dizer: algo público é também privado, na medida em que cada um passa a cuidar como se fosse seu e de todos. É um orgulho para Hirayama servir à sociedade e acho que o filme também é sobre isso. A rotina pode ser maçante, mas ele conhece suas válvulas de escape e não desconta sua angústia em cima das pessoas que passam pela sua rotina de trabalho. Afinal, ele sabe manter o foco nas coisas que ama: arte, música, leitura, fotografia, limpeza e a manutenção da sua fé. É bonita sua passagem pelo templo budista. Se todo dia ele cai numa repetição – acorda, veste o uniforme, toma café em lata, pega a caminhoneta, põe a fita K7, limpa uma dúzia de banheiros, almoça no parque, bate um retrato da copa da árvore, volta, vai se banhar na sauna pública, faz sua leitura e dorme sobre um colchonete no chão, sonhando com as sombras do amanhã – nos dias de folga, ele pega o relógio e sai de bicicleta para uma outra rotina, que tem uma outra frequência, em busca de resolver suas questões pessoais, satisfazer seus desejos mais comuns. Comer bem, comprar um livro, revelar e atualizar suas caixas de fotografia e até fumar um cigarro, se der vontade.
Os personagens que cruzam seu cotidiano são uma forma de dar contraste a tudo isso. São ases do imprevisto, inerente a qualquer rotina. Eles geram acontecimentos que são sentidos e observados silenciosamente por Hirayama, o que ocorre até a metade do filme. Ele não é de falar; ou acha desnecessário expressar-se nesse mundo veloz demais para ele. Os diálogos só se instauram em sua boca depois que personagens mais importantes para a sua vida aparecem: a Mama – que não é sua mãe, mas a cozinheira que ele mais ama – e a sobrinha Niko – filha da irmã burguesa com quem não mantém relações estreitas. Niko é responsável por esticar o tempo do imprevisto e gerar ainda mais simpatia pelo protagonista. A forma como ele resolve as questões do acaso são sempre cheias de integridade. No momento em que a mãe de Niko aparece para buscar a filha, percebemos que não há nada de errado entre os irmãos, apenas que eles decidiram seguir rumos opostos na vida - coisa que o próprio Hirayama havia explicado para a sobrinha. Estamos diante de um personagem verdadeiro consigo mesmo, que não sofre de vícios destrutivos, é desprovido de megalomania e vê a solidão como algo normal, contornável.
O filme de Wenders é simples, sutil e singelo. Foi rodado em 15 dias. É um clamor por paz, num país que voltou a comprar armas de guerra depois de mais de 70 anos desarmado. Trata-se de um chamado de humildade que servirá àqueles que insistem em seguir ao abismo cavado pela indústria das armas entre os conflitos internacionais.
Comments