Pobres Criaturas
- Michel Schettert
- 9 de mar. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 29 de mar. de 2024
Fui assistir ao filme Pobres Criaturas no Cinépolis, um cinema de Belém situado no último piso do Boulevard Shopping. Cheguei uma hora antes, para pegar um ingresso, porque era sexta-feira à noite e a minha intuição dizia que a fila da bilheteria poderia incomodar. Chegando lá, não foi o que ocorreu. Diante da entrada vazia, fui no autoatendimento e logo pesquei meu ingresso de papel rebobinado. Enquanto esperava a hora do filme, resolvi baixar o Badoo, um aplicativo de encontros e relacionamentos parecido com o Tinder. Eu estava no meio de um shopping center, no Dia Internacional da Mulher, e eu queria ver se algo havia mudado naquela vitrine virtual de gente querendo caso. Muitos ainda pensam que 8 de março é apenas o dia das mulheres, mas não é. Trata-se de uma data para reconhecer e celebrar os direitos que as mulheres vêm conquistando na sociedade machista. Entrei na plataforma, fiz o cadastro, postei minha foto e comecei a pulsar naquele cardápio de mulheres. É incrível: você insere um raio de quilômetros (eu pus 2km) e o aplicativo busca pessoas disponíveis nessa rede. Recebi 3 curtidas em alguns minutos, mas não pude ver quem era, pois não havia pago o plano premium. Passado o passa-tempo, não concluí muita coisa sobre o que estava buscando, mas dei um up na autoestima - o que foi quase o prenúncio da fala de Swiney, a proxeneta de Pobres Criaturas: “We must work. We must make money. But more than that Bella, we must experience everything. Not just the good, but degradation, horror, sadness. This makes us whole Bella, makes us people of substance. Not flighty, untouched children. Then we can know the world. And when we know the world, the world is ours.”

Simpática é a resposta de Bella Baxter: É isso que eu quero.
A protagonista vive dentro de um corpo que se matou – a sua mãe – que se jogou de uma ponte grávida. Quem a encontra é o curioso doutor Godwin Baxter, ou sutilmente chamado de God: não se trata do Dr. Frankenstein, embora possua o mesmo grau do Complexo de Deus. Esse acontecimento se passa no pretérito da narrativa: o chancelado cirurgião tira o bebê da barriga da suicida, pega o cérebro do bebê e o instala no crânio da mãe. Eis como nasce Bella Baxter, um experimento à moda silesiana: os choques elétricos dão vida a um corpo de mulher com mente de bebê. Emma Stone se parece com um fantasma despingolado.
A parte inicial do filme é mostrada em preto e branco. A garota faz xixi no chão, aprende a falar, a se alimentar e constantemente tem ataques de raiva, sob a repressão do seu Criador. Que alma Bella tem? Na falta de identidade, fala em terceira pessoa. É introduzida ao assistente do “pai”, o qual irá monitorar sua evolução. O rapaz é um bom moço e vai além. Max McCandle cuida bem de Bella e os dois, na visão de God, trocam olhares de amor. É a fase em que Bella está procurando prazer sexual. É a boca (ou o buraco) em super big close. O pai-médico-cirurgião então propõe ao assistente que case com sua “filha”, sob a condição de nunca saírem da residência dele. Este contrato é redigido pelo advogado Duncan, que surpreende o espectador ao inaugurar uma nova etapa na narrativa: ele convence Bella (abusando dela sexualmente) a fugir com ele antes do casamento. Os dois combinam uma aventura com prazo de alguns meses.
A partir daí a arte do filme ganha outra consistência a cores. Eles saem de Londres e vão à Lisboa, onde Bella finalmente sai sozinha pelas ruas e se emociona com o fado de Carminha. Depois, Duncan convida a moça para entrar num baú e partir para o próximo capítulo da aventura: uma viagem de cruzeiro. Em meio a muito sexo, os dois se deleitam no fluxo da água através daquele percurso náutico, no qual Bella vai conhecer uma simpática velhinha e seu jovem companheiro. Eles lhe mostrarão o prazer pelo intelecto. Ela chega ao ponto de trocar o sexo pela leitura, o que enfurece o parceiro de viagem. O navio os leva até Alexandria, onde Bella irá experimentar tanto a comoção diante do sofrimento na pobreza quanto a inocência diante da confiança indistinta. A questão do dinheiro aparece aí no meio. Trata-se de uma jornada, em geral, bastante heroica ou fabulosa, que lembra o episódio da Branca de Neve.
Tudo muda quando se chega na França, onde a dupla está financeiramente perdida. Bella conhece então a vida no bordel, junto da colega Toinette e daquela cafetina que comentei no início, a Swiney, interpretada magistralmente por Kathryn Hunter. Bella despacha o parceiro e resolve viver a vida no bordel em troca de comida e experiência. A visão de mundo que ela vai conquistando é bastante incomum se você for um espectador hedonista. Aqui não detalharei mais.
A arte do filme é cheia de esplendor, com muitos tons de amarelo e azul. Muita textura também. A fotografia interpõe planos de grande angular, às vezes com uma vinheta bem larga. O desvio cromático, a distorção, o desfoque, coisas belas que eu também usei no documentário Ramal de Rezadores, são dignos de uma tela grande tal como o cinema proporciona (por isso fui até o Cinépolis). A trilha musical é original e mirabolante: embora seja repleta de melodias ora graves ora agudas, ela consegue criar uma atmosfera de humor compatível com cada descoberta que a protagonista vai fazendo. Em geral, a gente ri. Meu caro Walter me disse que o filme se parece com um bolo de noiva, "exaustivamente enfeitado". Eu concordo. É uma boa imagem comparativa. São excessivas camadas temáticas na jornada de autoconhecimento da garotinha. Quando ela retorna para o casamento, a sensação é de que se tornou igual ou pior que o "pai". A cenografia louçã ofusca essa degradação. Faltou partir o bolo com um golpe de machado. Ainda assim, é um contraste forte e atual: a beleza visual versus a degeneração humana. Parece coisa do Tinder.
Que destino vai ter Bella? O filme consegue surpreender ainda na última parte, quando finalmente Bella retorna ao lar, sob o aviso de doença terminal do “pai”. Surpreende porque, não bastasse toda aquela enxurrada de encontros que a protagonista tem ao longo do filme (que colabora para a formação de uma personalidade), aparece finalmente o general de guerra Alfie, no meio do casamento entre Bella e McCandle, dizendo-se o marido daquele corpo. Alfie era o esposo daquela mulher grávida que se matou, cujo nome agora sabemos: Victoria (uma óbvia ironia). Como Bella é interessada por todo tipo de experiência, ela aceita ir com o militar para a sua residência e viver com ele alguns dias, até descobrir os motivos que levaram Victoria ao suicídio. Bella quer ir embora, mas Alfie não deixa. Nesses dias, ela descobre o poder da arma de fogo pelas mãos de Alfie e, assim, a relação deles vira um jogo de matar ou morrer. No meio da risada da ovelhinha negra, Bella parece tomar consciência do prazer original em si: interferir na natureza da vida, tal como fazia Godwin, seu “pai”, já morto por metástase. Ela derruba o general. A vingança parece um prato que se come frio, isto é, um prato para pobres criaturas. É sensato o título do filme. Por isso não posso deixar de lembrar o filme de Ruy Guerra, Os Desuses e os Mortos (1970): Bella parece a mistura entre o Morto-Vivo (Othon Bastos) e Viúva Sereno (Ítala Nandi), transformando-se nesta figura que sobrevive num mundo de vingadores rejeitados, sem terapia, aos quais não restará outra solução senão introduzi-los no modo pet híbrido.
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