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Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar

  • Michel Schettert
  • 6 de set. de 2023
  • 6 min de leitura
Trabalho e/ou liberdade

“Estou me guardando para quando o carnaval chegar” é o nome do filme de Marcelo Gomes (2019) lançado nos cinemas e disponível em Youtube e Netflix.




A primeira cena do filme chama atenção pelo som. Não se sabe se é um longa de ficção ou documentário, porque sons e ruídos parecem descolar das imagens. Mas essa dúvida deixa um gostinho interessante - a trilha é d’O Grivo. Uma voz narradora nos apresenta ao local geográfico do filme, o agreste nordestino, onde chove pouco e a terra é seca. É a voz do próprio diretor, o qual junta antigas memórias e uma nova visão sobre a cidade onde viveu parte da infância. Estamos em Toritama (Pernambuco), que em Tupi-Guarani significa “terra da felicidade”. Trata-se da capital mundial do jeans, onde tudo gira em torno da fabricação de roupa. É nesse sentido que lares, famílias e máquinas se movimentam. O filme se confirma como documentário quando vem a primeira entrevista. O diretor conduz as conversas de uma forma muito íntima, lembrando Eduardo Coutinho. Embora ele diga que o tema do filme seja “trabalho”, parece que um dragão bem maior pousou por ali, com ares de “liberal”. Grande parte das pessoas depõe sobre o orgulho em trabalhar. Dizem-se aliviadas de não terem mais patrão e também se sentem mais livres. A cadeia produtiva vai se revelando na medida em que as personagens reais vão aparecendo.


O primeiro tipo marcante é Leo. Ele se transforma numa espécie de protagonista, talvez por ser um sujeito confiante e arrojado. Convincente, o rapaz dispara várias certezas: “O bom da vida é a lei do silêncio, porque enquanto você trabalha não precisa tá falando besteira”. Ele diz que nasceu para o trabalho, embora em sua primeira cena apareça dormindo no chão, com cara de ressaca. Lembra-me a abertura de “Chapeleiros”, de Adrian Cooper, sobre uma fábrica de chapéus em Campinas.


Há também o dono da Star Jeans, empreendedor e manequim vivo de suas próprias peças de roupa. Um cara criativo. Diz não gostar de trabalhar, pois seu negócio mesmo é beber. “Os outros é que trabalham para mim”. É cuidando dos detalhes, das cores e o do design que ele encontrou seu nicho.


Mais adiante, uma senhora na cadeira de balanço questiona o boom da moda: “Costurar? Eu sou agricultora” diz ela, bem ao lado de uma outra senhora que costura à máquina, ao lado ainda de uma galinha de estimação - que dorme.


A fala dessa senhora decreta o resumo do filme: uma visão sobre um Brasil do interior que vem mudando, acelerando seu ritmo de produção e consumo na toada das novas tecnologias. A causa dessas mudanças, penso, não se deve só ao uso de novas máquinas e meios de comunicação, mas também ao efeito da reconfiguração da ideia de liberdade nos dias de hoje. Essa percepção se realça quando do documentário ouvimos os discursos que defendem a ausência do patrão, colocando a liberdade em primeiro lugar.


Muitos trabalhadores entrevistados se dizem mais à vontade sem carteira assinada. Ser autônomo significa para eles seguir as próprias necessidades de tempo e dinheiro. “Quanto mais você trabalhar, mais dinheiro você vai ter”. Isso parece mesmo acontecer, mas é preciso diferenciar a noção de liberdade da ideia de ter grana no bolso. Autônomo não tem férias remuneradas nem décimo terceiro. Será que vale o sacrifício de não ter chefe?


Na última etapa do filme, a cidade de Toritama se esvazia. Chega o período do carnaval e todo mundo desce para a praia brincar. Os trabalhadores que vinham de longas jornadas no ofício, abandonando as horas de descanso em troca de juntar dinheiro, chegam ao final do ano com a mais plena vontade de pular carnaval na areia da praia. Até aí tudo bem – vale lembrar que o carnaval é o último momento para se esbaldar antes do jejum quaresmal; É tradicionalmente a última brecha para os pecados da carne, antes dos preparativos para o novo ciclo que irá renascer (lembra do ovo de páscoa?). Brincar o carnaval como quiser é um ato de liberdade, sem dúvida. É permitido gastar tudo e até mesmo se gastar. Mas pular o carnaval livremente não significa ser um sujeito livre.


Este ritual vem se transfigurando. O foco passa a ser a festa do carnaval em detrimento ao período preparativo para o novo ciclo? Antes disso, existem várias questões. Por exemplo: Se a tua máquina quebrar, quem vai pagar o conserto? E os teus direitos trabalhistas? Férias e décimo terceiro agora é por tua conta. Licença maternidade. Vais trabalhar até morrer sem pensar em aposentadoria? Tua saúde anda como? Teu futuro está sendo cuidado? Previdência Social por tua conta em risco. Plano de Saúde, Segura de Vida, melhor nem cotar. Fica claro que o salário de um autônomo não pode ser o mesmo do piso sindical.


Todo sacrifício tem uma finalidade. Mas eu não acredito que Liberdade no Carnaval seja a finalidade de todo o toritamense.


O nome do filme ironiza uma resposta.

O nome da cidade traz mais dignidade.


É preciso não confundir a noção de liberdade com a de ter grana no bolso. Todo esse sacrifício tem que valer mais do que pular carnaval. Tem que valer sua qualidade de vida, seu envelhecimento saudável, sua educação completa, seu pleno acesso à cultura e a outros bens imateriais desprezados pelo Estado liberal do terceiro mundo. A água potável por exemplo.


No filme, muitas cenas são cercadas por sujeira, imagens de valas, poças, lixo no chão. Fica aí uma questão aberta... Embora não seja o foco do filme, restam informações importantes sobre o desenvolvimento de Toritama. Existe tratamento de água e esgoto ali? Saneamento básico? O que se faz com o lixo? As imagens dão uma impressão de desordem e descaso com a questão estrutural que permeia grande parte das cidades em crescimento no Brasil. Os políticos precisam entender que há danos iminentes à saúde das próximas gerações.


“O importante é o agora, porque o futuro ninguém sabe”, diz um dos trabalhadores. Mas é preciso criticar esse ponto de vista e abrir perspectivas. Em momentos de crise é imprescindível haver recursos financeiros guardados para controlar suas decisões no futuro. Pode não ser “agora”, mas os problemas vão aparecer. Por isso é que o sacrifício do toritamense tem que valer mais do que um carnaval bem aproveitado. Tem que valer a conquista da estabilidade emocional e financeira num futuro problema.


Achille Mbembe (camaronês autor do livro “Necropolítica”) faz uma relação muito contundente entre sacrifício e liberdade em Heidegger e Bataille. O primeiro filósofo defende que o “ser para a morte” é a condição decisiva de toda liberdade humana, isto é, somente se é livre para viver a própria vida quando se é livre para morrer a própria morte – o que equivale, no caso do filme, à liberdade para se acabar no carnaval do jeito que bem entender. Porém, o segundo filósofo ressalta: “o sacrifício na realidade não revela nada. [...] Para sua autorrevelação final, é preciso morrer, mas ele terá de fazê-lo enquanto vivo – olhando a si mesmo ao deixar de existir. [...] Mas é uma comédia!”. Vale lembrar que, para Bataille, a comédia é mais ou menos o meio pelo qual o sujeito humano “voluntariamente engana a si próprio”. Isto não é lá ter bom humor na crise? Estar consciente de que os problemas virão? Liberdade é primeiro ter consciência, optar com consciência, gozar do livre-arbítrio consciente e responsavelmente.


No filme, o Sr. Canário tem uma fala esclarecida. Ele é o último guardador de rebanhos remanescente. Cuida de bodes. Critica a voracidade dos ricos e gananciosos: “Não se pode só pensar em dinheiro, tem que fazer o que gosta”. Sua semelhança com um profeta não é mera coincidência.


Leo, aquele protagonista citado anteriormente, diz que até gostaria de ser profeta, mas nunca se sentiu preparado para essa função, porque gosta mesmo é de cachaça. Demonstra grande habilidade diante da câmera: Ao girar a pá de areia em volta de si, vemos o quanto este forte homem sabe sobre o corpo. Ágil, rápido. Tem uma destreza com os gestos e uma boa certeza com as atitudes. Leo é conhecido como o trabalhador mais produtivo da cidade. “Meu nome é trabalho e meu apelido é hora extra!”. Sua capacidade em manejar seja o que for parece mesmo insuperável. Ele era cortador de cana, fez muitos bicos pesados e agora acha fácil costurar jeans. Ele trabalha em várias facções – nome dado às oficinas de costura que funcionam dentro da casa das pessoas, numa espécie de cooperativa familiar. A cena final do filme acontece graças a ele, mas não vou contar.


Há uma outra cena em que um grupo de pessoas escuta o rap de Mano Brown enquanto termina o dia de serviço. Aliás, vale esta recomendação: todo mundo deveria escutar Racionais Mc’s para entender um pouco mais sobre o povo brasileiro que vai evoluindo nessas últimas décadas. “Vida Loka” é um bom começo. O brega também aparece muito no filme, assim como o reggae, o gospel e o sertanejo.


Outra bela cena mostra o balé das mãos de uma costureira. Dali brota uma crítica poética através do som: na medida em que o barulho da máquina de costura vai sendo substituído pela melodia de um piano clássico, o que resta? Mais adiante, um vendedor presume que já desmaiou por causa de estresse – doença poderosamente oposta a uma “terra da felicidade”.

 
 
 

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