Retratos Fantasmas
- Michel Schettert
- 20 de ago. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 28 de ago. de 2023
Fui ao aniversário de 40 anos da Fotoativa, na Praça das Mercês, onde ocorria um bolo e uma projeção de vídeos de 4min dos associados. Mostrei um vídeo dos aniversários que registrei na Fábrica de Sonhos, em Abaetetuba. Logo depois peguei um mototáxi para o Cinépolis para ver Retratos Fantasmas. É bom voltar ao cinema. Este ano ainda não tinha ido, pois a sala que frequento – Líbero Luxardo, está fechada para reformas. A previsão era abrir em agosto, mas até agora não houve retorno das atividades. Uma pena porque é o único cinema de arte de Belém. Chegando ao Cinépolis, a fila estava pequena, porém o caixa teve um problema técnico e fui direcionado para uma daquelas máquinas de autoatendimento. Sem fila. Deveria ter ido logo de primeira. Peguei um ingresso a custo de 40 reais. Está caro ir ao cinema comercial. No Líbero a inteira custa 12. Enquanto esperava o horário do filme, fui dar uma volta no shopping, lugar que não costumo frequentar. Procurei chicletes, mas não achei. Achei meu amigo Arlan Madson, antigo colega de escola, com sua namorada, igualmente indo ao cinema, mas noutra sessão. Ele comentou que estava acompanhando minhas andanças pelo interior do Pará. Estou dando oficinas e registrando a região do Baixo Tocantins, um dos afluentes do Amazonas. É chegada a hora do filme, pus uma camisa de manga para entrar na sala, pois esperava que o ar-condicionado me causasse calafrios, mas não houve gelo. O ar estava meia-bomba e logo o calor me fez sacar fora a camisa xadrez. Fiquei tranquilo com a temperatura a noite inteira. Começam os trailers e me chamam a atenção dois filmes, um chamado Nosso Sonho, que vai narrar a trajetória da dupla Claudinho e Bochecha, a qual acompanhava na minha adolescência; e o filme Resistência, sobre a futura inversão de criador e criatura: a I.A. é quem cria humanos e não mais o inverso. Parece um daqueles filmes Boom em que tudo explode o tempo todo. Achei a premissa interessante e a estética muito parecida com Guerra nas Estrelas.
Começa o filme de Kleber Mendonça, seu mais novo documentário, exibido no festival de Cannes 2023. Depois de Bacurau, a expectativa não parava de latir. Mas este filme não tem nada de historinha triunfante ou contra-hegemônica. Ao contrário, a linguagem vai na onda das principais ideias que estão pairando nas produções experimentais do momento – o autorreferencialismo, o ensaio fílmico e o realismo fantástico. O filme se divide em 3 partes e já ao final da segunda ficamos cansados. A voz do diretor preenche o filme inteiro com a narração sobre a história de si, sobre cinemas de rua (que é minha preferida) e sobre algo que não dá para definir muito bem, apesar de nomeado como “igrejas e espírito santo”. A trilha sonora do filme é simples, usa algumas músicas para transitar entre as partes (como Sidney Magal) e insiste em criar ambiências alienígenas/paranormais muito clichês. A primeira parte vem inaugurada com imagens de arquivo da cidade de Recife, mais especificamente do Centro Histórico e da Boa Viagem, a zona sul. É onde somos apresentados à casa de Kleber, onde morou 40 anos de sua vida. Arquitetura, reformas, obras no vizinho, gatos, medidas de segurança e filmes. Muitos filmes ele produziu na sua cobertura, com muito sangue e bang-bang. “É ótimo ver sua casa tomada pela produção de um filme”, comenta o diretor. Ali foi rodado O Som ao Redor. A chatisse desta parte do filme consiste no entendimento questionável que o diretor possui em relação ao seu público e no desconhecimento da diferença entre autorreferecialismo e auto mise-en-scène: algo muito mais interessante na medida em que são os movimentos de si frente à câmera os únicos que podem expor a verdadeira identidade de uma voz que narra pela duração de um tempo fílmico - este móvel ,flexível, resiliente. A questão está no movimento, não no discurso burguês autocrítico.
De repente aparece um fantasma numa das fotografias que ele fez pela vizinhança. Parece que vamos acompanhar a busca pelo fantasma, parece que a ficcionalização do documentário se inicia, mas não é isso. Ficamos com o comentário sobre Nico, o cachorro da vizinha que latia depois de morto. Tal momento é capaz de desdobrar outros espaços no espectador. Bkn. Mais ainda revelador é a aparição da mãe fazendo o L ao lado de Kleber, nas eleições de 1989, ambos vestindo vermelho porém sem as máscaras de Lula. Dá para sentir um retorno de prazer e fascínio nessa cena, que aumenta quando passa um cometa no céu atrás do prédio. Reparem como alguns nomes são soltos no meio do filme. São os artistas que trafegam pelas ruas, interferindo e integrando o imaginário fantástico da cidade - empurrão dado como sopro adivinhatório.
A parte dois começa a detalhar a vida de dois cinemas de rua, o São Luiz e o Cine Palácio. O primeiro é abordado tanto pela multidão que circula pela rua Aurora quanto pelos letreiros, que sintetizam os temas dos momentos. É lindo ver moda e decadência juntas. Já o Cine Palácio espanta tanto pela intimidade com que a câmera na mão flui em torno do icônico projecionista Alexandre Moura quanto pela informação de que o prédio foi concebido por uma distribuidora de filmes alemã que era braço do partido nazista, a UFA. Mas isso acabou em 1941, ufa! Getúlio Vargas continua polêmico. Dos escritórios das distribuidoras internacionais que tinham sede no Ed. Alfredo Fernandes, a estrela maior era o estivador Paulo Barbosa, que recolhia e revendia o material desperdiçado pelos estúdios. Cartazes jogados como lixo às vezes eram doados por ele por falta de comprador.

23h10 da noite. Não tenho sono, mas já estou cansado do filme. É exatamente quando começa a terceira parte, que busca sem sucesso o tom fantasmagórico. Uma lupa mostra os símbolos arquitetônicos do Cine São Luiz, que foi construído sobre o terreno de uma igreja anglicana derrubada no passado. Onde foi parar aquele fantasma do início do filme? Não sabemos. Talvez esteja na cena final, que é um tanto constrangedora, mas não compromete o filme. Fora a sensação de vergonha alheia, a cena traz ao nosso corpo o tempo presente (pela situação uberizada), uma empatia estranha possível pela conversa forçada, além de um confluente amedrontamento de imaginários entre condutor e conduzido.
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